Ainda não é isso
Ainda não encontrei o jeito. Parece coisa de passar a vida procurando. Se, por acaso, topo com ele num texto meu é porque me engano. Já me acostumei com essa euforia que logo dá lugar a um muxoxo. Cai a ficha, os ombros pendem pra frente, a língua estala no céu da boca. A esperança espezinhada. / Um dia virá, talvez. Se sentará à mesa, entre grandes malas, me dirá Bom dia. Estou aqui. Mesmo assim, não saberei reconhecê-lo. Constrangido com esse estranho na minha sala, vou torcer pra que vá embora logo. / Venho tateando o que posso, como posso, quando posso. Às vezes, às cegas. Às vezes, um lampejo ralo de uma suspeita. Isqueiro aceso contra o vendaval. As quase-coisas que encontro enquanto leio duram o tempo da minha atenção e me bagunçam, às vezes, pra sempre. Quando bato à máquina não passa de um estalo de tecla, de um gole d’água, de um piscar de olhos. Não ficam em pé. Nem deitadas. Preferem sumir. / Nos últimos dias, me dediquei a arrumar a casa. Lustro o abandono. Reencontro textos. Tento avivar vontades. Escrutino tudo como um cientista que nunca fui. Aqui, agora, livros espalhados pela bancada de trabalho. Mexo neles, viro-os pelo avesso, acaricio-os pra ver depois minhas mãos sujas de fuligem. Das páginas passadas rapidamente vem uma aragem. Têm o hálito de poeira antiga. Tento mais uma vez decifrá-las. Não o que dizem. Algumas delas tenho quase decoradas. Mas como dizem. O jeito. Um segredo guardado entre a tinta, os papéis, as costuras e a cola de um livro, ao mesmo tempo em que paira, ileso, sobre o mundo. / As palavras que o papel sequestra são o vestígio de um movimento. (Está lá, e muito melhor dito, num texto do Brik.) Os leitores aceitam esse fluxo, ainda que não o percebam. Correm atrás do vento, os dentes ao sol. Capturá-lo, o que está por baixo, por cima e entre é a meta. Não pra submetê-lo à humilhação da fixidez. Um troféu de caça. Mas pra mantê-lo vivo, na voz, na cabeça, na mão que escreve. A caneta a postos, todo dia tentar imitá-lo. Não como um falsificador. Mas como músico. Até torná-lo nosso. / Das leituras fica sempre uma memória enevoada. De transe, de dança, de paisagem que foge (o mar, uma duna, uma cama, uma metrópole em chamas etc.). Sonho. Não é bem o que a gente pode enumerar o que interessa. Mas os vazios que entalam na goela quando a gente tenta explicar o que acabou de viver, calados e alheios, os olhos cravados numa página. Escrevo isso enquanto me observa um exemplar todo rabiscado de O Louco do Cati (1942), do Dyonelio Machado. / No ano passado eu o reli e acabei aos prantos. Fazia muito tempo um livro não batia tão forte. Me estirei no descampado da minha cama, arruinado. Esperei a morte. Era aquilo. As anotações no diário revelam um entusiasmo raro. / “A simplicidade do período que mascara uma complexidade abissal. De ritmo, imagem, sentidos. Que se sucedem sem que percebamos que se movem. Quase que apenas pelo desejo de seguir adiante. Como os personagens. Cinema-conversa. Escrita de atmosfera. Uma repulsa brutal a essa tendência simplória da contação de histórias que relega o engenho da narração à condição de ornamento.” Por meses tentei imitar Dyonelio até nos seus erros. Não consegui. / Ainda me espanto quando penso que o livro foi integralmente ditado por Dyonelio a sua mulher e filha enquanto se recuperava de uma doença após sua prisão política na ditadura Vargas. No que pensava Dyonelio. O que via a sua frente enquanto falava. A boca seca. Os olhos cravados no teto. / (O que sentiam sua mulher e sua filha diante das imagens que emanavam de sua voz. Como lidavam com a tentativa de aprisioná-las sobre a folha em branco.) / Me interessam muito pouco as histórias. Quase não gosto delas. Apesar do livro se organizar a partir de circunstâncias históricas e políticas dramáticas do país, quando leio Dyonelio me emociono mais com um modo de dizer. Que inventa caminhos de dizer e de articular coisas enquanto aparentemente nada acontece. Ao mesmo tempo, enigma e jogo. Participamos do texto, envolvidos por uma fluir suave de imagens. Não vemos como nos envolvem. Mas nos envolvem e seduzem. Não sabemos pra onde vamos, e ainda assim vamos. E de repente saímos da leitura sem saber o que aconteceu. O que nos aconteceu. Muito acordados. Loucos. Outros. / Isso é o jeito. / Ainda não é isso.


